terça-feira, 22 de abril de 2014

Ao som de Elis Regina, escrevi...

Com um pouco de esforço, fechei a porta. Culpa da ferrugem nas dobradiças. Desci as escadas cheias de bitucas e passei a corrente no portão. Duas voltas. Olhei para trás, o portão era de um branco desgastado. Descascado, eu diria. Quanto tempo eu já não cuidava dessas coisas. Também, que tempo se tem quando se mora em um lugar feito São Paulo? Não é o que todos dizem?! 
Pois bem, tô nesse mesmo barco, nesse mesmo embalo. Acendi um cigarro. Do outro lado da rua, Seu Alfredo abria sua quitanda. Nenhum cumprimento. Na verdade, eu nem sei o nome dele. Digo que é Alfredo porque tem cara de Alfredo. De vez em quando vou lá, aos domingos de manhã, depois de acabados meus cigarros e o café. É, lá é o tipo de quitanda que vende de tudo sim. 
Hoje está frio, o tempo nublado. No meio fio da calçada, escorre água que vem do quintal de dona Gerci. [Não, dessa vez não inventei. Esse é o nome verdadeiro dela]. Aquele cheiro de sabão em pó, de casa limpa, é tão bom. Tem cheiro de infância. Lembro-me quando ia à escola com uma mochilinha azul de pano e esse cheiro vindo dos quintais sempre me distraia pelo caminho. Caramba! Mas...Como é que alguém pode gastar tanta água assim?!! Estamos em tempo de racionamento. 
Dia desses quase dormi sem tomar banho. A caixa lá de casa é tão pequena, que o pouco de água que restava, não tinha força pra subir pelo cano. Tive de subir na única parte da casa que tem laje, ou seja, no banheiro, pegar a água da caixa com um balde e esquentá-la no microondas para tomar o típico banho de gato. Não, não teve lambidas. Para variar, meu gás tinha acabado. E, é isso mesmo, odeio banho frio.
Bom, com todo esse perfil traçado, o que deve estar pensando sobre mim?! Não que eu me preocupe, é claro. Apenas sou curioso sobre como as pessoas me vêem. Embora, dizem por aí que é da maneira que nos pintamos. Não ando pintando nem nota de um real. Na verdade elas foram extintas, né?! É...Deve ser por isso. 
Enfim, não, eu não sou jornalista. Deve pensar isso pelas citações sobre café, cigarros e a dureza embutida no portão descascado, a casa de telha ou a falta de gás. Só esqueceu da parte em que digo que tenho um microondas. É… Isso não me desvia de nada, apenas faz de mim mais um número na estatística da consumidora Classe C. Bom, para você que acha que vendo água mineral na Avenida Tiradentes, ali perto da Pinacoteca, também errou. Esses dias vi na TV que eles chegam a tirar mil reais por mês. Nada mal. 
Sem terceira chance porque não gosto de ser comum, vou logo dizer: sou fingiDor. Confuso?! Eu explico, finjo que sou um detetive, normalmente à noite, lá na boate Alcova. Ouço histórias das dançarinas e em nossas conversas, tomo-lhes as dores. Durante o dia, saio chutando pedras pelo caminho até me recolher eu meu pequeno e sombrio aposento. Lá, finjo ser um escritor e derramo todas aquelas dores em palavras. Apenas as escrevo, sem verdades ou mentiras.

PS.: O post nada tem a ver com Elis Regina. É que às vezes, enquanto ouço músicas, imagino histórias.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Que Casca Branca é essa?!

Camila, Renata e Juliana interpretando os jesuítas

No camarim, nada de toalhas brancas ou frutas. Minto, há três maçãs que logo serão devoradas em cena por cada uma das três atrizes: Camila Gregório, Juliana Seabra e Renata Konsso. A estreia do espetáculo Casca Branca, da Cia Teatro dos Orelhas, no sábado (5), ocorreu por volta das 20h30, no Adamastor Centro, em Guarulhos. Porém, atrizes e toda equipe já estavam no local, às 14h?! Sim, havia muito trabalho pela frente, desde a montagem do espaço da plateia  até o próprio camarim e, para isso, a força tarefa envolvia das atrizes ao diretor, no caso, Luciano Gentile.

Em cena, apenas um enorme tapete vermelho, 16 tatames brancos, dois sacos cheios de bonecos de pano e mais outros três que ficavam fora deles. Nada de palco, cenário, luzes ou efeitos especiais. O grande espetáculo se dava por três itens: as atrizes, a trilha sonora gravada e ao vivo e o figurino. Isso esteticamente falando, é claro, porque a poesia do texto e toda a montagem da peça são quase que um show à parte.

Do que essa Casca Branca se trata? Ela discorre sobre o aldeamento da tribo indígena Maromomi, os supostos primeiros habitantes de Guarulhos que surgiram na cidade por volta de 1605, 1606 e por aqui permaneceram por 60 anos até sua fuga e desaparecimento total, de acordo com livros do pesquisador Benedito Prezia, no qual a peça é baseada. Isso soa como um tema simples ou meramente curioso para você? Não se contente. Toda a história é contada por três atrizes que representam ora os índios, ora os jesuítas, ora os paulistas, num clima absurdo de tensão que nos deixa aflitos e reflexivos sobre como esses personagens reais da história se sentiam. Principalmente o colonizado, o índio.  

Essa tensão toda, além da interpretação das atrizes, se dá inclusive pela música. Instrumentos como violoncelo e piano compõem a angustiante trilha. Isso sem contar com a flauta indígena, viola, violino e chocalho utilizadas ao vivo pelo músico Edson Luciano, que criou toda a trilha sonora. Os volumes e principalmente as pausas, intensificavam ainda mais as tensões [som operado por Franklin Jones, vulgo DJ Jones]. Na plateia, um silêncio que permetia ouvir os passos de Edson entrando ou saindo de cena, observado sempre por uma das atrizes.


Os tatames sobre o tapete também fazia alusão
 à bandeira do Brasil
No chão, o tapete vermelho formava um enorme retângulo, demarcava onde toda a cena aconteceria, somente o músico transitava fora dele. Era o pedaço de terra aldeado e que depois seria colonizado. Para aludir a colonização, as atrizes montavam um quadrado com os 16 tatames. E nas duas montagens que acontecem em cena, havia uma delas dentro do espaço a ser colonizado. Simplesmente uma das partes mais geniais do espetáculo.

E, falando em genialidade, o figurino é também algo a ser destacado. Pois permitia às atrizes se transformarem nos três personagens em diferentes cenas modificando apenas alguns detalhes das vestes, como por exemplo, a saia se tornava calça apenas com um nó dado em cada uma das pernas, na altura do joelho, para montar o paulista. Ou a rede que no início da peça era usada como um cinto, ao ser colocado sobre o rosto das atrizes, representava o índio colonizado. Crédito honroso à figurinista Si Kiomi.


O espetáculo termina exatamente como começa
A peça em si é pura desconstrução. Ao entrar na grande sala, nada de cortinas vermelhas, o público já se depara com as três atrizes sentadas no tapete, alongando-se e passando baixinho e individualmente seus respectivos textos enquanto a plateia se ajeita. O músico leva seus instrumentos aos poucos para o lado esquerdo do "palco" e uma cadeira, onde se sentará cada vez que tocar. E depois de toda a tensão realizada durante 50 minutos, tudo termina exatamente como começou: com as atrizes se alongando, quase que susurrando seus textos e o músico recolhendo seus intrumentos. Como se nada tivesse acontecido. Como se tivessem acordado de um sonho, ou quem sabe, um pesadelo.

"Quem não vive assim, aldeado em si mesmo? Eu vivo assim. E qual é o momento em que cada um de nós finge que trabalha? Finge que obedece? Finge que é subjugado? Qual é o momento em que também o seu superior finge que sabe o que fazer. Finge que manda em você? Finge que acredita em uma instituição qualquer?... Aqui o objetivo comum a todos, a todas as forças, é permanecer todas as coisas veladas, escamoteadas, escondidas. Que todas as contradições sejam eliminadas! Que todas as reflexões desapareçam! Que todo mundo aqui seja cooptado! Que nosso discernimento sucumba em si mesmo e se dilua!", essa é uma das frases finais dita pela atriz Renata Konsso, despida de personagem. É a casca branca sendo rachada, como um simples ovo de casca branca e fina. É o contexto se alinhando à realidade de muitos, se não de todos, de nós.

Na plateia, algumas lágrimas caem timidamente. "É preciso atingir o couro, até que o sangue venha à superfície", essa fala, dita por um dos jesuítas, certamente desenha o que aqueles índios colonizados e escravizados pelos paulistas passaram. E como não ter a emoção levada à flor da pele nessa peça? Como se não bastasse, o último texto mistura trechos da poesia Pátria Minha, de Vinicius de Moraes. Claramente, é como se todos levitassem ao terminar da peça, momento digestão. E é com essa "carne" no estômago, que todos retornam as suas respectivas casas.


Parabéns, parabéns e parabéns, Cia Teatro dos Orelhas! Que arte!

Quem quiser assistir ao espetáculo, acompanhe o grupo pelo Facebook.com/orelhas.orelhas. Ainda haverão cinco apresentações. Porém, aguardam a Secretaria de Cultura liberar as datas.

Humm. As datas foram liberadas! As apresentações serão no Adamastor Centro (Av. Monteiro Lobato, 734, Macedo)

12 e 13 de abril, às 20h30
26, às 20h30
27, às 18h e às 20h30

PS.: Chegar uma hora antes do espetáculo para retirar o ingresso na bilheteria. A concorrência é grande, acredite.

* O projeto foi financiado pelo Funcultura.